Na ocasião dos 60 anos da cidade, resgatar o empenho criativo e crítico dedicados à sua construção é fundamental para pensar a UnDF
Por Lucas Máximo
Em fevereiro de 1956, após eleito Presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek decidiu construir Brasília como profecia realizável, síntese de seu Plano de Metas e portal para o processo de mudança que a sociedade brasileira deveria encarar rumo à modernização inexorável. Brasília nasce, então, condensando as visões de renovação política, administrativa e estética de um país diante de escolhas singulares a serem feitas. Mais do que produto do cumprimento das disposições da primeira Constituição da República (1891), que previa a mudança da capital do país, Brasília é compêndio do espírito de uma época, cidade carregada de símbolos que evocam a hegemonia do urbano sobre o rural; do industrial sobre o agrícola; da dinamicidade sobre o imobilismo; do futuro sobre o passado.
A educação talvez seja a área que melhor abrevie a encruzilhada histórica que o Brasil encarava àquele período. Sob a égide do nacional desenvolvimentismo, cujas premissas outorgavam à concepção de um novo sistema de educação nacional o dever de colocar o país em rota de emancipação, o final da década de 1950 e início dos anos de 1960 foi permeado por debates em torno de como o setor educacional poderia atuar a serviço do pragmatismo necessário para o impulsionar o desenvolvimento de uma nação que se pretendia moderna. Assim, no âmbito do ensino superior, estava posta a dicotomia entre um projeto ideal de universidade, voltado às transformações demandadas pela sociedade, e um modelo vertical de educação superior, concebido ainda nos anos 1930.
A criação da Universidade de Brasília (UnB) em 1961, um ano após a inauguração da nova capital, simboliza a missão de uma universidade necessária – termo postulado por Darcy Ribeiro para denotar a instituição pública
de ensino superior apta a responder aos desafios da modernidade – engendrada naquele contexto. Síntese de ambições de seus intelectuais idealizadores que eram, de certa forma, porta-vozes de um projeto de nação igualmente ousado, a UnB representou um modelo distinto de educação superior, no qual ciência e tecnologia deveriam ter o protagonismo necessário para a constituição de uma mentalidade orientada ao desenvolvimento e à emancipação.
Assim, refletir sobre a concepção de Brasília e os primeiros passos percorridos para edificação de seu ensino superior público implica, necessariamente, rememorar os sonhos daqueles que ergueram esta cidade e vislumbraram, no Planalto Central, um locus territorial privilegiado para imprimir uma nova concepção de educação, adequada à vocação dinâmica que o país e a nova capital programavam.
No momento em que Brasília completa 60 anos, cabe-nos a reflexão: se esses sonhos não forem minuciosamente revisitados e novas propostas, idealizadas, com ousadia e otimismo, de que teria servido todo empenho criativo e crítico dedicados à construção da cidade?
Pensada para ser o avesso dos demais centros urbanos do país, Brasília adquiriu, ao longo dos anos, contornos radicalmente distintos daqueles imaginados pelos seus fundadores. Os desafios de ordem educacional, socioeconômica, ambiental, de saúde e de segurança hoje enfrentados são postos de forma tão complexa que certamente surpreenderiam os idealizadores do seu plano original. Portanto, em busca de soluções relacionadas aos problemas apresentados, demandam-se respostas ágeis da gestão pública que reconheçam as particularidades do território distrital e coloquem-no em posição de se reinventar. Para isso, o fomento de ciência e tecnologia surge como indicação assertiva corroborando a (re)construção desse organismo vivo carregado de inventividade e singularidade: o Distrito Federal.
Na ocasião do sexagésimo aniversário de Brasília, o Governo do Distrito Federal apresenta, à Câmara Legislativa, o Projeto de Lei Complementar nº 34/2020, que “autoriza a criação e define as áreas de atuação da Universidade do Distrito Federal – UnDF, e dá outras providências”. Num momento singular de nossa história, que escancara o valor do conhecimento científico como bússola das boas decisões governamentais para conter uma pandemia sem precedentes, a possibilidade de constituir a primeira universidade pública do Distrito Federal é colocada em discussão.
Invoca-se, com tons de contemporaneidade, o espírito de Darcy Ribeiro e a urgência de se pensar, mais uma vez, a universidade necessária para o Distrito Federal. Uma universidade que considere o fato de 75% da população do Distrito Federal exercer seu trabalho no setor de serviços, sendo este um dos setores
mais suscetíveis a passar por processos de automação e robotização nos próximos anos; que leve em conta a intensificação do uso de tecnologias no ensino e a tendência mundial de utilização de abordagens problematizadoras, com foco no protagonismo estudantil; que observe, com empenho de se buscar soluções, a alarmante desigualdade do Distrito Federal.
Apesar de a constituição de um sistema público de educação superior ser previsto por sua Lei Orgânica (1993), o Distrito Federal é, hoje, uma das cinco unidades federativas que não possuem uma universidade pública sob sua alçada, sendo acompanhado por Acre, Rondônia, Espírito Santo e Sergipe. A realidade posta também aponta para a existência de 66 instituições de ensino superior operantes no Distrito Federal, das quais 62 delas são privadas e concentram 82% das matrículas nesse nível de ensino, revelando enormes lacunas de acessibilidade à educação superior para as populações menos abastadas. Segundo dados da última Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD), da Codeplan, enquanto 76% da população de alta renda familiar detém ensino superior completo, menos de 10% da população de baixa renda possui o mesmo nível de educação formal.
Os desafios são claros e muitos deles postos na letra da Lei. De acordo com o Plano Distrital de Educação (PDE), principal instrumento de formulação das políticas educacionais, em vigência até 2024, o Distrito Federal deverá “[…] elevar a taxa bruta de matrícula da educação superior para 65%, ampliando a participação da oferta federal e a participação na oferta pública distrital de forma a aumentar 1% da taxa bruta ao ano até o último ano de vigência deste Plano”. Orquestrar tal ampliação com a necessidade de atender prioritariamente a localidades com menor acesso à educação superior pública e orientar atividades de ensino, pesquisa e extensão à resolução de problemas da territorialidade distrital constitui, portanto, o principal ponto de partida da UnDF.
Do ermo terreno no qual se constituiu a Capital da Esperança à pulsante metrópole de mais de três milhões de habitantes, é fundamental que Brasília se reinvente sem abandonar sua razão de existência: ser a cidade síntese do futuro. Ao abraçar o espírito pioneiro dos fundadores da capital, a UnDF se apresenta aberta ao diálogo, carregando os sonhos de todos aqueles que projetam, na cidade, a concretização do futuro idealizado para o Brasil e que, acima de tudo, vislumbram a democratização do acesso à educação superior e a promoção de ciência e tecnologia distrital como vetores do nosso desenvolvimento.
“Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar; constatando, inter-venho; intervindo, educo e me educo. Pesquiso para
conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade.”
(Paulo Freire, 1996)
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